Um paraíso Europeu em pleno Trópico de Capricórnio

Casa Hermann em 1909

Como patrimônio arquitetônico por si só, a “Casa Hermann” já teria importância significativa, mas, se contextualizada no tempo e no espaço, ganha uma magnitude intangível. Nela (e no seu entorno) estão contidos valores como empreendedorismo, gestão, progresso, sustentabilidade, pioneirismo e, principalmente, respeito a valores humanitários. A Casa que teve seu processo de construção iniciado no ano de 1903, fazia parte de um grande complexo, vinculado à Fábrica de Tecidos Carioba S.A., adquirida, em leilão por Franz Müller, pai de Hermann Theodor, em sociedade com seu irmão /Hermann Theodor/ (Theodor, era o sobrinho, sendo o nome completo desse segundo Hermann, Heinrich August Hermann Müller) e o capitalista inglês Ingels Rawlinson.

Fábrica de Tecidos Carioba

A fábrica foi inaugurada em 1875, mesmo ano da construção da Estação Férrea de Santa Bárbara, pelo engenheiro americano Willian Ralston e os proprietários rurais irmãos Antonio e Augusto de Souza Queiroz. O interior do Estado de São Paulo vivia uma expansão da cultura do algodão entre 1862 e 1875, devido principalmente à Guerra de Secessão (1861-1865) que afetou as áreas produtoras do sul dos Estados Unidos, maior fornecedor da indústria têxtil inglesa. O conflito também fez com que sulistas imigrassem para terras brasileiras compradas pelo senador do Alabama William Norris.
Adquirindo novas áreas em Santa Bárbara d’Oeste, esses imigrantes implantaram o arado e outras técnicas agrícolas na região, que seria chamada de Vila dos Americanos ou Villa Americana. Foi do superintendente da São Paulo Railway, J. Albertin, a iniciativa de distribuir sementes para os agricultores. Com o fim da guerra civil, os americanos voltaram a exportar algodão para a Inglaterra. Sem o mercado externo para o algodão, surgiram as primeiras tecelagens paulistas, uma delas na Fazenda São Domingos (hoje Carioba).

Vila operária Carioba

A princípio as fábricas de tecidos implantadas na futura Carioba eram compostas por 28 teares movidos à força hidráulica e operados por 34 pessoas. Nesse período sua principal matéria-prima era o algodão. A produção de tecidos era destinada a vestimenta de escravizados e sacos para café. Anos mais tarde passou a fabricar casemira de cores variadas, sendo a pigmentação retirada da mata nativa. Em 1882, a tecelagem foi comprada pelos irmãos ingleses Clement e George Willmot que iniciaram a construção da Vila Operária. Alguns anos depois, a empresa passou a se chamar Fábrica de Tecidos Carioba (“pano branco”, em tupi-guarani). Entretanto, endividados, faliram em 1896 e a fábrica ficou fechada até 1901, quando foi arrematada em leilão pelo comendador alemão Franz Müller.

Albertine e Franz Müller

A era Müller Carioba: Nascido em Brunswick, Baixa Saxônia, Alemanha, em 1855, Franz Müller chegou ao Brasil em 1879, estabelecendo-se na cidade de Porto Alegre, onde conheceu Albertine Goetze, com quem se casou, em 1883, e tiveram seus primeiros três filhos: Hermann, Erich e Hans. Em 1889, mudou-se para São Paulo onde foi um dos primeiros a construir residência no nascente bairro de Higienópolis, na Rua Maranhão, 341 (posteriormente tombada pelo Patrimônio Histórico do Estado), onde nasceram três de seus filhos, Margarete, Franz e Heinz.
Destacou-se por relevantes serviços prestados à colônia austríaca, tendo recebido por isso o título de Comendador do Imperador da Áustria. Em 1902, Franz Müller mudou-se com toda sua família para Carioba.
Com a aquisição da tecelagem e de todo complexo, Carioba viveu seus dias de paraíso tropical! A empresa passou a ter razão social de Rawlinson Müller & Cia. A intenção inicial era recolocar a fábrica em funcionamento para, em seguida, vendê-la, mas o Comendador ficou fascinado pela beleza natural do local, na confluência do rio Piracicaba com o Ribeirão Quilombo. Então, escreveu à sua esposa Albertine:

“A noite está um encantamento, a temperatura é morna e muito agradável, a lua cheia brilha no céu. No horizonte as nuvens sobre as colinas ainda refletem os últimos clarões do sol que já se escondeu. Contra a mata escura se destaca o cintilante Rio Piracicaba. Ouço o sussurro do riacho ao fundo, ao redor é paz e tranquilidade.”

Foram meses de árduo trabalho até a recuperação da fábrica. Sob sua administração, baseada no estilo europeu, a fábrica e a vila operária foram ampliadas e foram criadas diversas oportunidades de emprego, bem como lazer, educação e diversidade cultural. Com a necessidade de uma fonte de energia mais potente para expandir a fábrica, o Comendador comprou, em 1907, a Fazenda Salto Grande. Em 1911, a hidrelétrica construída nas terras da Fazenda Salto Grande passou a funcionar, fornecendo energia não apenas para a fábrica e os empregados, como também para a Vila Americana, Santa Bárbara, Sumaré, os então distritos de Nova Odessa e Cosmópolis.

Na década de 1930 foi construída a hidrelétrica Cariobinha. Com as pedras retiradas para a construção da barragem e com a sobra de piche importado da Alemanha foram asfaltadas as ruas da vila operária. Esse foi o primeiro asfalto da região.
Um exemplo de industrialização vertical: Na fazenda, os Müller, em convênio com o IAC (Instituto Agronômico de Campinas), passaram a produzir algodão, milho e feijão, além de feno para a pecuária de leite que abastecia também a vila operária, então ampliada, com toda infraestrutura necessária aos operários.

Interior da Casa – 1910

A Vila Carioba tinha praticamente tudo que suprisse as necessidades dos moradores nas áreas culturais, de lazer, esportiva, saúde, além de comércio, escola, biblioteca, cinema, salão de danças, bandas de músicas, grupos de teatro, clube de regatas, igreja, campo de futebol, pista para pouso e decolagem de aviões, hotel, restaurante, açougue, padaria, bares, farmácia e parques recreativos que permitiam a visitação de turistas, políticos e empresários. O crescimento da vila gerou ainda mais empregos.

Preservação do meio ambiente e saneamento: A administração da família Muller tinha especial respeito à vida comunitária e ao seu contínuo progresso. Estabeleceram medidas disciplinares rígidas quanto à preservação do meio ambiente, à boa conservação das casas, à obrigatoriedade de cultivar um jardim e uma horta, ao respeito às árvores e à preservação das matas ao longo do Rio Piracicaba e Ribeirão Quilombo.
Destacava-se ainda a atuação da Fábrica Carioba quando da campanha de saneamento para erradicação da febre amarela que afligia a região (1816). Nesse período a vila operária possuía água encanada e saneamento básico. Carioba tinha sólidos laços onde a cooperação, a amizade, o sentido de bem comum permeavam cotidianamente as ações dos indivíduos. Os Müller acreditavam que era necessário unir o capital ao trabalho. Tudo isso, em um país que há menos de duas décadas, tinha sua economia baseada na mão de obra escravizada.

Embora sob a administração de brasileiros (ainda que de ascendência alemã), restrições foram impostas aos alemães durante a Segunda Guerra, incluindo a suspensão de crédito necessário para que promovessem a modernização da produção. Por esse motivo, na década de 1930, os Müller acrescentam Carioba oficialmente ao seu sobrenome, passando a usarem Müller Carioba.
Assim, a terceira geração de administradores da empresa se viu pressionada a vender o complexo de Carioba no ano de 1945. Carioba e outras propriedades vinculadas à família Müller foram adquiridas pelo grupo JJ. Abdalla, empresa constituída por quatro sócios, os irmãos José, Manoel, Nicolau e Antônio.

Casa Hermann Müller

Os Abdalla – Os Abdalla geriram o complexo por décadas. Embora sem o encanto da era Müller, mantiveram a qualidade de seus antecessores e chegaram a expandir a fábrica e a vila operária. Já na virada dos anos 1940, Carioba enfrentava uma concorrência muito grande de indústrias emergentes, por conta da própria diversificação do mercado (com preferência por outros tipos de tecidos) e de muitos empregados que deixaram a Vila e abriram pequenas indústrias na cidade de Americana.
Em meados dos anos 1970, devido à deterioração dos negócios do grupo, a fábrica de Carioba encerrou suas atividades, com um considerável passivo tributário e trabalhista. O período foi marcado por constantes greves e os empregados chegaram a ser pagos em tecidos que vendiam para sobrevivência. As terras acabaram divididas em lotes que serviram como indenização aos trabalhadores e a paradisíaca vila operária foi demolida em dois meses.
No ano de 1983, após a demolição da vila, as poucas casas restantes foram transferidas ao poder público para saldar dívidas de impostos.
A Casa Hermann e outros imóveis do complexo de Carioba passaram a integrar o patrimônio da Prefeitura de Americana, após acordo feito entre o poder público e a família Abdalla. Esse mesmo acordo estabeleceu a conservação do patrimônio arquitetônico da fábrica, enquanto a casa-sede da Fazenda Salto Grande foi transformada no Museu Histórico e Pedagógico.

Observatório

A CASA HERMANN

1909: surge a Casa Hermann – Hermann, nascido em Porto Alegre em 01 de abril de 1884, primogênito de Franz Müller, que havia estudado na Alemanha e Inglaterra e gerenciava a parte técnica das fábricas desde seu retorno ao Brasil, foi o idealizador da casa que acabou por ter seu nome adotado pela própria família. No ano de 1903, já noivo de Ernna Bormann, mandou erigir em ponto estratégico a casa projetada por ele. A edificação foi concluída no ano de 1909. Nesse mesmo ano, Hermann e Erna se casaram e passaram a residir no local.
A primeira versão da casa era simples: possuía o andar térreo e o inferior (subsolo), tendo como características principais um pé direito alto (de 5 metros de altura) com grandes portas e janelas, típicas da época. O andar térreo era destinado à vida cotidiana da família, com salas de estar e de jantar, além de dormitórios e sanitários.
A razão de a Casa ter sido edificada com um pé direito tão alto e com portas e janelas tão grandes era porque, quando de sua construção original, ela não era dotada de energia elétrica e assim otimizava a luz solar na sala de estar, muito embora fosse de conhecimento de seu proprietário que em alguns anos a benfeitoria chegaria, pois estava sendo construída uma usina, pela própria família, na Fazenda Salto Grande.

Hermann Theodor Müller e seu irmão Hans foram grandes parceiros de seu pai na administração das fábricas de tecidos Carioba. Após a morte do Comendador no ano de 1920, ambos assumem a direção das fábricas. Hermann além dos trabalhos voltados a indústria têxtil, dedicou-se a política sendo filiado ao Partido Republicano Paulista, atuou ativamente da comunidade participando das diversas lutas que culminaram na emancipação política do município.
Os diversos encontros de negócios ocorridos na Casa Hermann, eram realizados em uma ampla sala, cuja as portas de correr em madeira e vidro saiam do interior das paredes permitindo o isolamento acústico. Assim, o grupo de senhores que se reuniam nessa sala não seriam incomodados pelo som de crianças e mulheres que permaneciam reunidos na sala de estar, logo ao lado.
Um cômodo a ser destacado era a biblioteca! Toda construída em pinho de Riga e cedro rosa, trabalhada em marchetaria francesa, com grades em madeira em frente aos vidros que guardavam os livros, pintadas em preto, esculpidas em uma única peça.

Família Müller

O acervo pessoal de Hermann Müller que compunha a biblioteca era muito rico, inclusive com exemplares antigos – o acervo foi doado em 1982 pela família à Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Ao lado, um pequeno cômodo chamado sala branca, uma sala leitura, com uma grande janela voltada para o Ribeirão Quilombo.
Um dos dormitórios, quase uma suíte, possuía uma sala de banho com banheira e era ligado a um banheiro. No conjunto de quartos havia um apêndice voltado para o lado exterior, formando uma espécie de sacada .
A cozinha e as outras dependências de serviços eram acessadas através de duas escadas nas extremidades da casa que faziam a ligação do pavimento térreo com o inferior. Desta forma, os funcionários não precisavam transitar entre as salas, permitindo privacidade aos familiares e convidados.
As acomodações para funcionários e parte da infraestrutura de serviços da residência ficavam no pavimento inferior. Curioso era um cômodo, utilizado como dispensa, onde havia duas portas nas extremidades com teto baixo e piso frio para manter os alimentos conservados. Parte desses alimentos eram produzidos na própria fazenda Salto Grande de propriedade da família.

Ainda nos dias atuais é possível observar a lavanderia utilizada no período Müller, cujo piso hidráulico era o mesmo utilizado nas casas de operários da Usina Hidrelétrica do Salto Grande, outro empreendimento da família.
Anos 1910: a família aumentou – Hermann e Erna tiveram cinco filhos e, assim, a Casa sofreu uma grande intervenção no começo da década de 1910. Na ampliação da residência foram inseridos elementos no estilo ítalo-germânico e o imóvel passou a possuir cinco pavimentos.
Foi construído um andar superior, onde foram instalados os dormitórios dos filhos, cujo acesso era feito através de uma suntuosa escada em madeira. Nessa reforma foi instalado um observatório, no ponto mais alto da casa alcançado através de uma segunda escada. Passou a contar, então, com uma adega, pavimento inferior, térreo, andar superior .

Respeitando as tradições alemãs, os Müller inseriam o estudo da música aos seus filhos desde a infância. Dona Albertine, mãe de Hermann, manteve essa tradição que foi passada a seus netos. Na residência Hermann, professores alemães eram contratados para lecionarem a seus filhos. Na segunda versão da casa, no pavimento térreo, foi construída uma sala ampla com dois ambientes e um banheiro. Ainda nos dias atuais é possível observar uma janela em estilo bay window.
Até uma adega fazia parte da construção, localizada no fundo da casa com maior proximidade com o Ribeirão Quilombo, possivelmente pela questão de temperatura, pois a encosta era toda recoberta por mata atlântica.
Um belo jardim gramado na frente da casa era utilizado pelos filhos e sobrinhos para a prática de jogos, além de uma piscina grande. Relatos apontam que membros da família jogavam moedas paras as crianças irem até o fundo e voltarem com o prêmio em mãos. Do outro lado, ficava uma casa de funcionários, a garagem e o celeiro.

Interior da Casa – Sem data

Fim dos anos 1930: a última grande reforma – O observatório astronômico foi substituído por um mirante no fim dos anos 1930. A Casa chegava a 53 cômodos, distribuídos nos cinco pavimentos.
Os Müller viveram na Casa até fins dos anos 1930, quando a eclosão da Segunda Guerra Mundial colocou Brasil e Alemanha em posições antagônicas. Após a partida de Hermann e sua família de Carioba, não se tem relatos de quem residiu na casa que foi de sua propriedade.

1945: o período JJ Abdalla – Em 1945, já no fim da Guerra, a empresa JJ Abdalla adquiriu a propriedade toda que incluía as fábricas, residências e a Fazenda Salto Grande e a partir de então novos costumes foram agregados. As casas patronais foram distribuídas entre os quatro irmãos e sócios. A Casa Hermann passou a pertencer a Manoel João Abdalla, que pouco a frequentava. Ele residia no Rio de Janeiro e dirigia a Fábrica de Tecidos Confiança.
Sob sua liderança algumas alterações foram realizadas na arquitetura da casa, como a retirada do arco romano das portas e janelas da fachada e o rebaixamento do teto.

Década de 1980: a Prefeitura de Americana – O imóvel foi desapropriado em 1983. Durante essa década, instalou-se até uma pequena fábrica no subsolo da residência e posteriormente o abandono tomou conta da Casa. Nesse período era comum ver pessoas andando pelo imóvel todo deteriorado. A inércia persistiu até meados da década de 1990 quando começaram algumas obras pontuais realizadas pela Prefeitura de Americana e culminou com uma ampla reforma para abrigar a Casa de Cultura Hermann Müller, criada pela Lei n° 3.313. de 14 de julho de 1999, e inaugurada oficialmente no ano de 2001.
A partir de então, passou a servir de espaço para visitação e manifestações artísticas e culturais. Em 09 de maio de 2013, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, através da Resolução 021 estabeleceu o tombamento da Casa Hermann.

A Casa de Cultura “Hermann Müller” foi reconhecida como patrimônio histórico e cultural, pelo CONDEPHAM, em decreto de tombamento, publicado no Diário Oficial de Americana em 20 de outubro de 2020.
O imóvel passou por pequenas modificações e totaliza ainda hoje os seus 1.250 metros quadrados de construção. A Casa Hermann encontra-se fechada para visitação desde agosto de 2019.

Elizabete Carla Guedes e Orestes Camargo Neves


Créditos e agradecimentos por seus relatos e trabalho de pesquisa, dentre outros, a:

• Brigitte Maria von der Leyen Pietzschke
• Elisama Bertochi Ribeiro
• Elizabete Carla Guedes
• Família Müller Carioba
• Fanny Olivieri
• Fernando José Goffi de Macedo
• Guiomar Magri
• Horst Müller Carioba
• Lourdes Colla
• Maria José Ferreira de Araújo Ribeiro
• Melquesedec Ferreira
• Rogério Bortoloto
• Suzete de Cássia Stock